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03/09/2024 às 11h11min - Atualizada em 03/09/2024 às 11h11min

Aprendizado além das quatro paredes

O início do ano letivo é um momento de expectativa para muitos alunos; você vai conhecer famílias imigrantes que vivem fases diferentes no aprendizado dos filhos no Canadá: uma que está prestes a começar a jornada, outra que passou por essa adaptação recentemente, e ainda uma com mais experiência, que venceu inúmeros desafios para chegar até aqui

Muriele Silva
Redação North News
Da esquerda para a direita: Maria Almeida, filha de Andreza Almeida, em seu último dia no grade 2; Maria Fernanda, filha de Elaine Maia, na escola; e João e Maria, filhos de Andreza Almeida, na graduação da escola | Fotos: Arquivo de Família
 
O verão mal começou e já está se despedindo. “Passa tão rápido”, costumam dizer aqui no Canadá. Mas para muitos pais que vieram do Brasil e consideravam as férias escolares de lá, com duração de um mês, longas o bastante, está mais do que na hora de a criançada voltar à rotina escolar. Então é chegado o momento de se iniciar um novo ano letivo, motivo de expectativa para a família Martins. A filha mais velha, Alice, de 5 anos, vai ter o seu primeiro dia de aula por aqui.

A mãe, Sara, disse que não está se aguentando de ansiedade e que, apesar disso, tenta não demonstrar preocupação. “Ela é muito tímida e não sabe falar inglês, mas já fizemos um combinado: todos os dias vai me ensinar uma palavra que aprender na escola. Acho que isso de certa forma vai servir de incentivo. Como eu também tenho dificuldade com o idioma e com a construção de novas amizades, explico que é normal ter medo, mas que vamos vencer juntas essas barreiras”, confidenciou. 

A psicóloga Karine Veronez esclarece que o suporte emocional dos pais é essencial neste processo, e que criar mais momentos em família e demonstrar interesse pelas novas descobertas dos filhos são atitudes que ajudam a fortalecer a autoestima deles. “As primeiras percepções sobre o mundo são aprendidas dentro de casa, por meio do olhar dos pais. Então se eles estão ansiosos e preocupados, isso pode influenciar a criança. É importante que seja cultivada uma comunicação amorosa e que se desenvolva sensibilidade para lidar com os desafios que estão por vir. Os filhos precisam se sentir à vontade para expressar seus sentimentos e os pais devem entender que vai levar um tempo até que todos se adaptem à nova vida”, explicou. 

Karine fez outro alerta para os pais, que devem ficar atentos ao comportamento dos filhos e buscar ajuda especializada quando necessário. “A adaptação pode levar alguns meses, até porque, vai além de aprender um idioma diferente. Há relatos de famílias cujos filhos se sentiram totalmente inseridos na nova vida e cultura a partir do segundo ano letivo no Canadá. Não existe uma regra. Então não se pode sobrecarregar a criança com expectativas ou idealizações. Caso ela não tenha vontade de ir para a escola, apresente sinais de agressividade ou isolamento social depois de um tempo, é importante procurar um profissional. Lembrando que comunicação não-violenta, paciência e amor serão sempre a chave para um melhor desempenho escolar”, concluiu.

O que é diferente do Brasil?
Para quem também está começando agora essa jornada da educação fora de seu país de origem, pode surgir uma infinidade de dúvidas e temores, tanto para os estudantes quanto para suas famílias. Mas tenhamos calma! A informação confiável é capaz de descomplicar esse processo. Primeiro, é importante saber que o ano letivo começa em setembro e termina em junho. Em algumas províncias do Canadá, as crianças são aceitas nas escolas a partir dos cinco anos (completos ou se elas forem completar no ano do ingresso). Em Ontário, antes disso, já aos quatro, embora os pais sejam obrigados a matricular os filhos somente quando eles tiverem seis anos. 

Em geral, o sistema educacional tem quatro níveis e pode ter diferenciações de acordo com cada província. O pre-elementary é como se fosse o “jardim de infância”, que aqui é chamado de Kindergarten e é dividido em dois anos: o Junior Kindergarten e o Senior Kindergarten. Essa é uma fase em que os pequenos aprendem o alfabeto e habilidades básicas como música, arte e socialização. Depois tem o elementary, que abrange o período entre a alfabetização e o oitavo ano; o secondary ou high school, que vai do nono ao décimo segundo ano; e o post secondary, ou ensino superior.

Na maior parte do Canadá, o idioma principal da educação escolar é o inglês, sendo que a língua francesa também está disponível por todo o país. É claro que a barreira linguística pode ser uma grande dificuldade na adaptação da criança imigrante. Por isso mesmo, as escolas oferecem um programa chamado ESL (English as a Second Language, ou Inglês como Segunda Língua) a partir do elementary, com professores capacitados para auxiliar os estudantes estrangeiros no aprendizado do idioma, de modo que eles consigam atingir o nível da sua faixa etária. 

O país dispõe de escolas privadas, mas as públicas oferecem ensino gratuito e de qualidade. Um aspecto que chama a atenção é quanto à escolha da unidade. A família que tiver preferência por determinada escola deve morar em um bairro que é atendido por ela. Então, para quem deseja procurar uma casa tendo como referência a instituição pretendida, é possível conferir a nota das escolas no site do Fraise Institute, acessando www.compareschoolrankings.org. 

Podem matricular os filhos nas escolas públicas os cidadãos canadenses e os residentes permanentes e temporários que tenham visto válido de estudo ou de trabalho. Primeiro é preciso fazer um registro on-line, e aí o sistema vai fornecer as opções de escolas disponíveis, de acordo com o local de residência da família. Depois de selecionada a unidade, durante a visita agendada, é necessário apresentar comprovante de endereço, passaportes com os vistos, certidão de nascimento e carteira de vacinação da criança, além da certidão de casamento dos pais. No caso de matrícula em escolas católicas, que também são públicas e gratuitas, é obrigatório levar o comprovante de batismo do estudante ou de um dos pais.

A exigência de uniforme geralmente é feita apenas pelas escolas católicas (considerando as públicas). O horário de aulas pode variar de uma escola para outra, mas fica entre 8h30 e 15h30, para conciliar com a disponibilidade dos ônibus, aqueles amarelinhos que a gente vê nos filmes, que fazem o transporte gratuitamente (é preciso verificar as condições de elegibilidade). 

E por falar em gratuidade, algo que impressiona os pais é o fato de não precisarem gastar uma fortuna com material escolar para os filhos que estão começando a vida escolar. Quem passou por esse momento recentemente no Brasil deve se lembrar da imensa lista. Por aqui, não pedem para as crianças levarem nada além de uma mochila, uma lancheira e uma garrafa de água no pre-elementary. Todo o restante é fornecido pela escola. Nos níveis seguintes, alguns itens ficam por conta da família, mas o material didático continua sendo gratuito. 

 
Mais contrastes 
As escolas geralmente ocupam um grande espaço e ficam rodeadas de parques infantis e quadras esportivas. Muitas pessoas se assustam com a ausência de muros, padrão que é visto também nas moradias por aqui. Foi o que aconteceu com a Elaine Maia, mãe da Maria Fernanda, de 8 anos, e do Matheus, de 7. “Nós chegamos no ano passado e o fato de a escola não ser cercada realmente me deixou apreensiva no começo. Os estudantes têm a liberdade de brincar nos campos do lado de fora durante os intervalos, o que é muito diferente da realidade com a qual estávamos acostumados, mas depois eu entendi que isso é feito com segurança e supervisão”, lembrou.
 
Elaine não foi uma exceção à regra da preocupação com a barreira imposta pelo idioma. Mas ela contou que o preparo dos professores para lidar com crianças de várias nacionalidades diferentes foi reconfortante para a família toda naquele momento de incertezas. A mãe disse ainda que para o Matheus, que é tímido, foi um pouco mais difícil se adaptar, só que, juntamente com a escola, ela foi encontrando caminhos para ajudá-lo na socialização. O que não foi um problema para a outra filha, Maria Fernanda. 

Espontânea, falante, segura. Essas são características da garotinha que saltam aos olhos de qualquer pessoa que conversar com ela por cinco minutos. “Foi complicado no começo. As crianças falavam comigo e eu apenas sorria, porque não entendia nada do que estavam dizendo. Mas minha professora me ajudou muito e eu tive aulas de reforço todas as manhãs. Nessas aulas, conheci um colega brasileiro que também me ajudou, e o meus pais treinavam comigo em casa”, contou. Maria Fernanda disse que ama as aulas diferentes que tem aqui, como artes e trama, e que gosta muito de fazer apresentações para a família. Ela está numa empolgação só para a volta às aulas. “Eu vou para uma parte nova da escola, conhecer pessoas diferentes. Isso me deixa muito animada”. 

Autonomia
As temperaturas baixas também podem ser uma preocupação, principalmente para quem vai lidar com o inverno canadense pela primeira vez. Mas assim como todos os outros ambientes fechados, as escolas possuem sistema de aquecimento (e de ar-condicionado central para dias quentes). Mas não pense que os estudantes vão ser poupados de enfrentar o frio! É absolutamente normal e esperado que eles brinquem ao ar-livre mesmo que os termômetros registrem temperaturas negativas. E mais! A própria criança é responsável por vestir o casaco ao sair para brincar. Isso porque o método de ensino do país incentiva a autonomia dos pequenos. Da mesma forma, eles precisam usar o banheiro sozinhos, já que os professores não podem tocá-los, o que, além de encorajá-los, também acaba sendo um auxílio para evitar abusos. 

Durante o período de aula, as escolas costumam ter dois ou três intervalos nos quais as crianças podem se alimentar. A instituição geralmente oferece apenas um lanchinho (snack), sendo que a refeição principal deve ser levada de casa. Por causa do grande número de pessoas alérgicas, é proibido qualquer lanche que contenha amendoim, castanhas e nozes.

Formação em resiliência
A carioca Andreza Almeida se mudou para o Canadá em 2018 com o marido e os dois filhos, João, hoje com 14 anos, e Maria, com 7. Como João já tinha iniciado a vida escolar no Brasil, precisou se adaptar à nova realidade e o processo não foi fácil. “Ele fazia curso de inglês antes de virmos, mas nada como ser exposto tanto assim. Como chegamos em maio, perto de acabarem as aulas, ele fez ESL, o que foi muito bom, porque passava o tempo brincando enquanto aprendia o idioma. Mas quando começou o ano letivo, em setembro, vieram os problemas. Meu filho sofreu bullying por não saber inglês e precisou lidar também com o choque cultural e com um ambiente um tanto hostil, formado por crianças com pais ausentes ou com problemas com drogas, porque ele foi estudar em uma escola-modelo, que é colocada em regiões estratégicas, onde vivem famílias de maior vulnerabilidade social. Ele chorava e pedia para irmos embora”, lembrou.

Andreza conta que os dois primeiros anos foram desafiadores. Já com a Maria, que chegou no Canadá ainda bebê, a experiência foi totalmente diferente, desde o aprendizado do idioma até a socialização com crianças de várias partes do mundo e a adaptação com o método de ensino. “O João veio de uma escola que aplicava prova toda sexta-feira. A Maria já não viveu isso. O Brasil tem muito essa coisa de exigir desempenho em avaliação. Aqui não, e essa pra mim é a principal diferença no ensino. Eles não enfiam conteúdo, mas querem formar cidadãos emocionalmente inteligentes, que saibam cuidar das suas finanças, que tratem as pessoas com dignidade, que respeitem outras culturas. Eles mesmos respeitam a criança, o tempo dela, e a validam, dizem que ela é capaz, e isso ajuda muito na formação de pessoas autoconfiantes”, relatou a mãe.

Toda a dificuldade que a família viveu ficou no passado e é claro que faz parte da linda história de resiliência e mudança de vida que está sendo construída por aqui. Andreza disse que o João, com aquele típico jeitinho carioca de ser, conquistou as pessoas ao longo desse tempo, e que, como a Maria já recebeu a formação canadense desde o princípio, é uma criança que se preocupa com o bem-estar dos outros, que respeita as pessoas e o que elas sentem.

Os dois estão na maior expectativa para o início das aulas, ele porque vai começar o high school, e ela porque vai mudar de escola. “A oportunidade que eles estão tendo é única, de falar três idiomas, de conhecer essa diversidade cultural. Eu falo pra eles: ‘o mundo é a garagem de vocês, e vocês podem ir a lugares que eu e seu pai nunca nem pensamos em conhecer’. Não tem preço o que estamos tendo a chance de proporcionar. Não tem como pagar experiência. Experiência você vive”, declarou.

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