27/06/2024 às 07h54min - Atualizada em 27/06/2024 às 07h54min
Portar maconha para uso não é mais crime, mas continua ilegal; entenda a decisão do STF
Corte definiu critério relativo de 40 gramas da droga para diferenciar usuário de traficante; abordagem continua com a polícia até o CNJ regular o tema
O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu, nesta quarta-feira (26), o julgamento que descriminalizou o porte da maconha para consumo pessoal.
A partir de agora será presumido usuário quem estiver com até 40 gramas da droga ou seis plantas fêmeas. Essa regra só vale para a maconha. O porte de todas as outras drogas continua sendo crime.
Esse critério com base na quantidade é relativo. Isso significa que pessoas com quantidade menor da droga poderão ser enquadrada como traficantes, se houver outros elementos que levem à conclusão de que se trata de tráfico e não de consumo.
A definição do critério de 40 gramas valerá até que o Congresso aprove alguma legislação sobre o tema, diferenciando na lei usuário de traficante.
Mesmo não sendo mais crime, o consumo de maconha ainda é um ato ilícito – a partir de agora, de natureza administrativa, e não penal. O STF não legalizou o consumo de maconha no país.
A descriminalização impede que alguém seja condenado criminalmente pelo porte de maconha para consumo (dentro do limite de quantidade fixado).
O usuário, no entanto, ainda está sujeito a punições como advertência sobre os efeitos das drogas e medida educativa de comparecimento a cursos.
A polícia ainda tem a competência para abordar as pessoas, levá-las para a delegacia e apreender a droga. Isso até o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovar uma nova regulamentação para o procedimento.
Condenados pelo crime de tráfico por quantidades inferiores à fixada pelo STF (40 gramas) poderão tentar rever na Justiça a sua condenação, com base na decisão do STF.
Ou seja, a definição da Corte tem o potencial de retroagir para beneficiar quem teve uma sentença criminal e esteja preso, por exemplo. Esse efeito não é automático e deverá ser feito caso a caso.
A decisão do STF encerra um julgamento que se iniciou há 9 anos, em 2015. Os ministros aprovaram uma tese que servirá de referência para todas as instâncias do Judiciário.
Leia abaixo os principais pontos da decisão:
O que significa descriminalizar? A decisão do STF faz com que deixe de ser crime no Brasil adquirir, guardar, transportar ou portar maconha para consumo próprio, dentro do limite fixado.
Essa previsão estava no artigo 28 da Lei de Drogas, de 2006. Essa norma já não previa pena de prisão para quem fosse condenado como usuário, e sim as medidas de advertência sobre os efeitos das drogas; prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
Com a descriminalização, sai do rol de punições possíveis a prestação de serviços à comunidade, que tem caráter penal.
Ao deixar de haver a possibilidade de condenação criminal, o usuário não será mais considerado reincidente, caso cometa um outro crime futuramente.
A descriminalização também impede que haja flagrante por uso de droga (dentro da quantidade presumida).
Não é legalizar O debate travado no STF se referiu só à descriminalização da maconha para consumo. Não se tratou de discutir legalização.
Legalizar a maconha significa colocar essa prática dentro da lei, tirando a proibição e fixando parâmetros para a atividade.
Para isso, seria necessário estabelecer regras e diretrizes, ou seja, uma regulamentação.
A legalização teria que trazer definições para toda a cadeia produtiva da maconha, desde a produção, distribuição, venda e consumo.
Esse cenário tem como local de discussão o Congresso, que é o órgão competente para criar as leis. Por isso, o debate no STF não tem a ver com legalização da maconha.
Maconha ou todas as drogas A decisão do STF descriminalizou o porte para consumo só da maconha, determinando que sejam presumidos usuários quem estiver com até 40 gramas da droga ou com seis plantas fêmeas de maconha.
O porte de quaisquer quantidades de outras drogas continua sendo crime.
A própria posse da maconha para uso, apesar de não ser mais crime, ainda é uma prática ilícita. Isso porque a substância psicotrópica presente na maconha continua na lista de uso proibido no Brasil pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
A Anvisa faz exceções como os medicamentos registrados que possuam em sua formulação a substância tetrahidrocannabinol (THC), desde que atendidas determinadas as exigências.
A partir de quando vale? A decisão do STF que descriminalizou o porte de maconha para consumo terá validade a partir da publicação da ata de julgamento. Trata-se de um tipo de resumo do que ficou decidido.
A ata é publicada no próprio andamento do processo, no site do STF. Costuma levar alguns dias para isso.
Como será a abordagem Pela tese aprovada pelos ministros do STF, a polícia continua podendo abordar a pessoa. O procedimento fixado prevê que o agente de segurança leve a pessoa para uma delegacia, onde a droga deverá ser pesada e apreendida.
Não será permitido fazer uma prisão em flagrante e nem lavrar o chamado termo circunstanciado, no caso de a pessoa se enquadrar como usuária. Ou seja, a pessoa não pode ser ficada criminalmente.
Haverá, contudo, um registro sobre substância apreendida com a pessoa.
Na sequência, a pessoa será notificada para comparecer ao juizado especial criminal. O juiz então poderá aplicar as sanções previstas na lei ao usuário (advertência sobre os efeitos das drogas e medida educativa de comparecimento a cursos).
Esse procedimento vai ser feito até que o CNJ aprove uma nova regulação.
Regulamentação de nova abordagem O procedimento de abordagem descrito acima deverá mudar assim que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovar um novo rito ao regulamentar o assunto.
Esse regramento futuro deve prever uma separação mais definida entre usuário e o sistema de segurança pública, direcionando as pessoas à área da saúde.
Em entrevista a jornalistas depois do julgamento, no final da tarde desta quarta (26), o presidente do STF, ministro Roberto Barroso, disse que até a atuação do CNJ, segue o procedimento já previsto na lei.
“Talvez desejavelmente no futuro, deva ser diferente, porque o que nós entendemos, e o mundo inteiro está passando a entender, é que drogas não são exclusivamente, e nem predominantemente, uma questão de segurança pública, mas sim saúde pública”.
Critério relativo O critério objetivo de 40 gramas ou seis plantas fêmeas para diferenciar usuário de traficante é relativo, e não absoluto.
Ou seja, será possível enquadrar como traficantes pessoas que forem abordadas com uma quantidade de droga menor do que o limite fixado, mas desde que existam outras provas que indiquem existir um comércio da maconha.
Entre esses outros elementos, estão: forma que a droga é armazenada, as circunstâncias da apreensão, a variedade das substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contato de usuários ou traficantes.
A quantidade de droga foi definida, segundo disse Barroso durante a sessão, por um acordo prévio com os ministros. Antes, havia propostas que iam de 10 gramas a 60 gramas. Conforme disse o presidente o STF, a quantidade de 40 gramas foi um “meio caminho” e é a quantidade adotada no Uruguai, “que é a experiência que temos notícias”, afirmou o magistrado.
Pela tese, o contrário também vale. Pessoas apreendidas com quantidades superiores a 40 gramas poderão ser enquadradas como usuárias, a depender da análise de cada caso pelo juiz, desde que se aponte “provas suficientes da condição de usuário”.
Retroage para quem já foi condenado A decisão do STF tem o potencial de beneficiar pessoas que foram condenadas e que estejam presas por tráfico, por quantidade de maconha igual ou inferior ao estipulado. Segundo Barroso, “possivelmente” essas pessoas poderão buscar a revisão da condenação.
Isso deverá ser aplicado se houver semelhança com a decisão do STF: quando a condenação for só pela maconha e não houver nenhum outro critério que possa configurar o tráfico.
Esse tipo de revisão deve ser analisado caso a caso.
“A regra básica em matéria de Direito Penal é que a lei não retroage se ela agravar a situação de quem seja acusado ou esteja preso. Para beneficiar, é possível”, afirmou Barroso em entrevista a jornalistas. “Portanto é uma especulação razoável”.
“Nós estabelecemos 40 gramas para distinguir tráfico de consumo como uma presunção relativa. Às vezes, uma pessoa com 40 gramas, se tiver com uma balança com anotações de venda é porque evidentemente é tráfico, é traficante. Portanto, 40 gramas não é uma presunção absoluta. Mas alguém que tenha sido condenado sem integrar organização criminosa, exclusivamente por ter sido flagrado com 40 g de maconha, possivelmente pode pedir a revisão dessa condenação”, declarou.
Por que diferenciar? A Lei de Drogas em vigor estabeleceu consequências e punições distintas para consumo e para tráfico, mas não fixou parâmetros para especificar cada prática.
Se para os usuários, a punição é administrativa, para traficantes a pena é estipulada de cinco a 15 anos de prisão, além de multa.
A fala de definição de critérios objetivos para distinguir as práticas abre margem para que pessoas sejam enquadradas de acordo com vieses discriminatórios, de acordo com a cor da pele, escolaridade ou local do flagrante, por exemplo.
Isso acaba elevando o encarceramento no Brasil, levando pessoas que seriam usuárias a serem presas por tráfico.
Segundo dados de 2023 da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), 852 mil pessoas cumprem pena no Brasil (650 mil em celas físicas).
O crime de tráfico de drogas é de longe o mais comum no sistema prisional brasileiro. Do total da população carcerária, 199.198 estão presos pelo delito (que inclui as tipificações de associação para o tráfico e tráfico internacional de drogas).
Por que o STF decidiu descriminalizar? A decisão do STF foi dada em um processo que tem a chamada repercussão geral. Isso significa que a tese aprovada deverá ser aplicada a todos os casos que tratam do assunto na Justiça.
De início, a definição do Supremo vai impactar pelo menos 6.345 processos que estavam parados aguardando a decisão.
O processo analisado pelos ministros é um recurso em que a Defensoria Pública de São Paulo contesta decisão do Juizado Especial Cível de Diadema (SP) que manteve a condenação de um homem pelo crime de porte de drogas para consumo pessoal.
Ele estava preso no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Diadema, e estava com 3 gramas de maconha.
O recurso pedia a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, que criminalizava o porte para consumo.
O caso começou a ser julgado em 2015 pelo STF. O relator é o ministro Gilmar Mendes.